Cecília Oliveira Boanova


IFSUL


Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas no Programa de Pós-Graduação em Educação na Linha Currículo, Profissionalização e Trabalho docente. Mestre pelo mesmo Programa na Linha de Pesquisa: Cultura, Escrita, Linguagens e Aprendizagem. Graduada em Licenciatura em Artes Habilitação em Desenho e Computação Gráfica. Especialista em Gráfica Digital, todas as titulações são oriundas da Universidade Federal de Pelotas. Atua profissionalmente, como professora, no Instituto Federal Sul-Rio-Grandense da cidade de Pelotas- RS nos Cursos: Técnicos em Comunicação Visual, Técnico em Design de Interiores, Bacharelado em Design e na Pós-Graduação Lato Sensu em Educação na Linha: Ensino e formação de professores. Dentre as temáticas pesquisadas encontram-se: Criação; Criatividade, Inovação, Design Sustentável; Design Gráfico e Educação junto as Filosofias da diferença, aprendizagem e formação de professores.


ceciliaboanova@gmail.com

orcid.org/0000-0001-6005-2433




Raquel Paiva Godinho


IFSUL


Dra. Raquel Paiva Godinho é professora e pesquisadora da coordenadoria de Design do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul), Brasil. Atualmente, ela é membro da equipe da Fundação Balmes envolvida em um projeto H2020 na Universidade de Vic-Universidade Central da Catalunha (UVic-UCC), Espanha. Seus interesses atuais de pesquisa incluem a área do Design, comunidades e colaboração.


raquelpg@pelotas.ifsul.edu.br

orcid.org/0000-0003-3968-7519


RECEBIDO: 13 de janeiro de 2020 / ACEITO: 30 de janeiro de 2020







OBRA DIGITAL, Núm. 18, Febrero - Agosto 2020, pp. 71-83, e-ISSN 2014-5039

DOI: 10.25029/od.2020.252.18





Resumo

Este artigo visa explorar o conceito de inovação através de um caso da área do Design, The Shoe that Grows, um tipo de sandália infantil de tamanho ajustável projetado com intuito de calçar crianças vivendo em situação de extrema pobreza. O caso chama atenção por atender primeiro a uma necessidade do humano e usa o Design e as estratégias de negócio para democratizar o acesso à calçados. Por meio de um estudo da literatura, tomando como principal aporte o manual de Oslo, apresentamos uma torção no conceito de inovação que pode ser entendida como uma crítica, que o faça ampliar.


Palavras-cHave


Inovação, Educação, Design, Manual de Oslo, Mercado.


Abstract

This article aims to explore the concept of innovation through a design case, The Shoe that Grows. It is a type of sandal for children of adjustable size designed to adapt to children living in extreme poverty. The case attracts attention because it meets a human need and uses design and business strategies to democratize access to footwear. Through a study of the literature and taking the Oslo manual as its main contribution, we present a shift in the concept of innovation that can be understood as criticism, which leads the concept to expand.


Keywords


Innovation, Education, Design, Oslo Manual, Market.


Resumen

Este artículo tiene como objetivo explorar el concepto de innovación a través de un caso de Diseño, The Shoe that Grows, un tipo de sandalia para niños de tamaño ajustable diseñada para adaptarse a los niños que viven en la pobreza extrema. El caso llama la atención porque primero satisface una necesidad humana y utiliza estrategias de diseño y negocios para democratizar el acceso al calzado. A través de un estudio de la literatura, tomando el manual de Oslo como su principal contribución, presentamos un giro en el concepto de innovación que puede entenderse como una crítica, lo que lleva al concepto a expandirse.


Palabras clave


Innovación, Educación, Diseño, Manual de Oslo, Mercado.






1. INTRODUÇÃO


Essa escrita surge em meio a pesquisa que visou explorar a temática da criação e da inovação no ensino de Design (Boanova, 2019). Esse último é visto como construtor de um processo estratégico de resolução de problemas que impulsiona a inovação, responsável por ligá-la a tecnologia, a pesquisa, aos negócios e aos clientes, ao mesmo tempo que agrega um novo valor e vantagem competitiva entre as esferas econômicas, sociais e ambientais. A preocupação com um ensino de Design que forme profissionais inovadores, se junta aos julgamentos de que a educação se mantém desatualizada frente aos modelos de mercado (Melo e Abelheira, 2015). Porém, cabe ponderar com prudência e entender, o que mobiliza a educação e o mercado, quais suas políticas e quem tem maior capacidade de resistência em defesa da vida humana para além do ciclo de vida dos produtos?

Diante disso, buscou-se como objetivo compreender o conceito de inovação a partir de um caso de Design, The Shoe that Grows, um tipo de sandália infantil de tamanho ajustável para calçar crianças vivendo em situação de extrema pobreza. A partir disso, realizou-se um confronto com a literatura e as diretrizes apontadas sobre a temática da inovação junto às indicações formuladas pelo Manual de OSLO 1. O confronto resultou em uma torção conceitual, que pode ser entendida como uma crítica, que visa permitir a ampliação e o alargamento do potencial que compreende o conceito de inovação.


1.1. DESIGN, INOVAÇÃO E MERCADO


Pensar os modos de inovação, no Design, requer o cuidado de explorar as complexidades dos sistemas mercadológicos em seus envolvimentos com os clientes, os fornecedores, os consumidores, entre outros. Design é uma palavra portadora de múltiplas entradas, assim torna-se relevante trazer as expectativas e as definições de duas organizações:

O design é uma disciplina dinâmica e em constante evolução. O designer com formação profissional aplica-se à intenção de criar visual, material, espacial e digitalmente os ambientes, cientes do experiencial, empregando abordagens interdisciplinares e híbridas para a teoria e a prática do design. Eles entendem o impacto cultural, ético, social, econômico e ecológico de seus esforços e sua responsabilidade final para as pessoas e para o planeta através de ambas as esferas comerciais e não-comerciais. Um designer respeita a ética da profissão de design (ico-D, 2015) International Council of Graphic Design Associations. Ratificado pelo Icograda Assembléia Geral 25, Montreal, Canadá, 18 de outubro de 2013. Tradução nossa.




1 Proposta de diretrizes para coleta e interpretação de dados sobre inovação tecnológica, que tem o objetivo de orientar e padronizar conceitos, metodologias e construção de estatísticas e indicadores de pesquisa de P&D de países industrializados. Segundo o manual nem tudo o que é lançado no mercado é necessariamente uma inovação. Para haver inovação são necessárias algumas características específicas segundo o tipo de inovação. O Manual distingue quatro tipos de inovação: produto, processo, marketing e organizacional (OECD/Eurostat, 2018, p. 19).



As definições da International Council of Societies of Industrial (ICSID) fazem uso do termo Desenho Industrial.

Desenho Industrial é um processo estratégico de resolução de problemas que impulsiona a inovação, constrói o sucesso do negócio, e leva a uma melhor qualidade de vida através de produtos inovadores, sistemas, serviços e experiências. Desenho Industrial preenche a lacuna entre o que é e o possível. É uma profissão transdisciplinar que aproveita a criatividade para resolver problemas e co-criar soluções com a intenção de fazer um produto, sistema, serviço, experiência ou um negócio, melhor. Na sua essência, fornece uma maneira mais otimista de olhar para o futuro reformulando problemas como oportunidades. Faz a ligação entre a inovação, tecnologia, pesquisa, negócios e clientes para fornecer novo valor e vantagem competitiva através das esferas econômicas, sociais e ambientais (ICSID, 2013). International Council of Societies of Industrial. Tradução nossa.

Nas definições institucionais acima, os designers são vistos como possuidores de capacidades: estratégica, técnica e criativa que gerem soluções para problemas da vida prática, ou seja, inovadores. Dentre suas ações, temos a geração de ideias, a elaboração de esboços, a escolha do método, a preparação e finalização do projeto, o acompanhamento dos processos de produção e pós-produção (industrial ou não), seguindo os modos de uso e consumo, conduzindo e cuidando do descarte e da reciclagem de produtos. Atravessando essas ações estão: a dedicação à criação de soluções estratégicas de intercâmbio cultural e econômico e a oferta de produtos com largo potencial estético e sustentável.

Tais definições servem para voltar ao ensino e a formação em Design e dizer de suas exigências, a fim de obter profissionais capazes de criar novas soluções para antigos problemas sociais, sendo essa uma responsabilidade dos cursos de Design. Considerando que é uma exigência entender as condições de possibilidade da formação intencional de um profissional inovador e eticamente saber o quanto a inovação está comprometida com a melhoria da vida humana. Mas a partir do entendimento que a inovação é algo com o qual se entra em relação (Boanova, 2019) e não algo que se possa treinar para adquirir (OECD/Eurostat, 2018), é potente olhar criticamente o conceito de inovação.

Ao questionar o potencial do Design para escapar das estruturas rígidas e sua capacidade de oferecer alguma forma de inovar que resista às mazelas sociais, realizou-se um estudo através de um caso que destaca a atuação do cliente na esfera social e diz de algo que resiste e vai além das vantagens competitivas e capitalistas. O caso The Shoe That Grows apresenta-se como um plano de possibilidades ao que seja inovar na perspectiva do que se quer defender neste artigo, em que o cliente busca uma nova forma de expressão no encontro com a realidade de crianças em condição de vulnerabilidade, resumida aqui pela expressão, ‘pés infantis enferidados’. Para melhor apresentar o caso é oferecida a cena a seguir.


1.2. CENA - THE SHOE THAT GROWS


Durante sua estada em Nairóbi, capital do Quênia na África, Kenton Lee teve uma ideia inspiradora enquanto observava as crianças correndo e brincando descalças ou usando sapatos cortados.

Um dia, eu estava com as crianças e vi uma menina com sapatos que eram pequenos demais. Ela tinha feito uma abertura na ponta dos calçados, para abrir espaço para os dedos [ver Figura 1]. [...] Vi que os dedos dela estavam para fora, cheios de pus, sujeira e feridas infeccionadas [ver Figura 2]. Descobrimos mais tarde que 300 milhões de crianças no país não possuíam calçados adequados ou andam descalças pelas ruas. Os pés delas tocam diretamente o chão, com resíduos, bactérias, lixo e cacos de vidros, o que leva a uma alta porcentagem de ferimentos e infecções. [...] Foi então que tive uma ideia: e se pudéssemos criar um sapato que aumentasse de tamanho junto com o crescimento deles? (BBC Brasil, 2015; CBN, 2016).

Lee sentiu que precisava fazer algo a respeito. Seu encontro inesperado e involuntário o levaria a projetar um sapato sustentável, que atendesse ao constante crescimento infantil e de certa forma o acompanhasse. O rápido crescimento infantil leva os responsáveis a investirem constantemente na aquisição de tamanhos maiores de calçados, o que se torna, por vezes, difícil até para as famílias com boas condições financeiras. Imaginemos então as dificuldades das famílias de baixa renda para manterem o abrigo dos pés dos infantes, tanto no continente africano como mundo afora. O desenvolvimento do The Shoe That Grows (ou O Sapato que Cresce, em tradução livre) conta com uma vida útil de até cinco anos, as sandálias foram equipadas com uma sola de borracha, parecida com pneus, e as tiras reforçadas são de couro. O que levou o americano do estado de Idaho a criação dos sapatos que ‘crescem com as crianças’ foi a constatação de que o crescimento delas é algo constante e os sapatos adquiridos num dia, dificilmente cabem nos pés no ano seguinte, tornando-os obsoletos. Assim, Lee vai ao encontro de uma equipe de designers que desenvolvem as sandálias que podem atingir até cinco tamanhos, equipadas com fivelas ajustáveis e solas super-resistentes. “O processo de criação foi interessante porque não sou um designer”, disse Lee ao site da BBC. “E eu não sabia nada sobre sapatos. Sou só um cara comum que teve uma boa ideia” (BBC Brasil, 2015). Para a implementação da inovação, ele contou com a ajuda de uma empresa do estado de Oregon, ela o permitiu concretizar tecnicamente sua ideia. Segundo ele, todo o Design foi pensado para a funcionalidade do calçado. Apesar de ter gostado do visual da sandália, Lee afirma que essa nunca foi uma preocupação (ver Figuras 3, 4, 5 e 6). “Nosso objetivo era desenvolver um sapato que durasse muito tempo” (BBC Brasil, 2015). E o mais interessante é que a invenção de Lee já enviou mais de 50.000 pares a mais de 70 países como África do Sul, Quênia, Gana, Nicarágua e Guatemala (VOA News, 2016). Uma recompensa sem tamanho para seu criador.




Figura 1. Sapatos pequenos demais com bicos cortados que chamaram a atenção de Kenton Lee em Nairóbi.




Figura 2. Fotografia dos pés machucados de criança em Nairóbi.Nairóbi.




Figura 3. Primeiro protótipo do sapato.




Figura 4. Resultado Final com velcro.




Figura 5. Resultado Final com velcro e pressão.




Figura 6. Fotografias das sandálias em uso.



Imagens da criação de Kenton Lee: The Shoe That Grows as a Child Grows (BBC Brasil, 2015; CBN, 2016; VOA News, 2016).

O que chama atenção na inovação de Lee é que ele buscou no Design a solução para sua necessidade, sua percepção centrada no humano o levou além da proteção dos pés, colocou no produto a questão do tempo e do que nele pode mudar, ajustar e crescer. Abrigar os pés é uma necessidade básica, o calçado que cresce resultou na implantação de um produto novo firmado em um redesign.

Esta inovação não atende prioritariamente aos padrões de consumo, crescimento econômico, reposicionamento de produto, plano de negócio ou competitividade, o novo produto atende uma necessidade básica do humano, mas que até então não era contemplada. Tal inovação se aproxima da forma do que se pensa possa ser inovar na perspectiva da invenção de problemas. Pelos escritos deleuzeanos (Deleuze, 2006), a criação de pensamento é a única criação verdadeira e está ligada a criação de problemas e ao pensamento sem imagem, sem semelhança. Lee reinventa o problema, seu encontro com os pés enferidados o levou a uma solução inexistente até então, resultado do seu pensamento que a princípio era sem imagem e o levou a inventar de um sapato sem semelhança. O que se quer explorar é o ato reincidente tornado senso comum de pensar as soluções e os problemas como dados já prontos. Lee não criou somente um produto ou recriou o sapato, junto à forma de expressão do novo calçado arrastou um conteúdo inerente ao corpo que cresce. Até então o crescer era inexistente ou apenas lembrado no momento da aquisição de um novo sapato com um número maior. Ele atuou como um criador ao colocar um problema inexplorado pela indústria dos calçados, seu produto atende a um hiato, fala de um acontecimento que é crescer. A tarefa de Lee foi arteira, criou um noema - estatuto que consiste em não existir fora da proposição que o exprime, novo nó de sentido, e o fez em um estado de coisas (Deleuze, 2015).


2. CONCEITO DE INOVAÇÃO E A CRÍTICA ÀS UNIVERSIDADES


A inovação pode ser vista como uma estratégia empresarial típica, as empresas procuram inovar para gerar e capturar valor, por meio de uma excelência operacional, buscam inovar: processo, organização, logística, produto e modelo de negócio (FAPESP, 2010; Rodriguez et al., 2008; Salerno, 2012).

Salerno (2015) define as diferenças entre descoberta, invenção e inovação. A descoberta é apresentada como um fato do mundo físico ou científico e precisa ser validada socialmente pelos pares. Enquanto a invenção é um construto, um modelo criado mentalmente que estabelece um paralelo entre uma observação idealizada e uma teoria, ideia ou conceito que é resultado da sintetização de ideias mais simples. Como exemplo de invenção, o autor cita o construto 14 bis de Santos Dumond. Já inovação é algo que está ligada ao mercado, ela é um conceito econômico e cita como exemplos: o pão de queijo congelado, o filtro de barro que purifica a água e o contêiner que revolucionou a proteção no transporte de cargas. Completa apontando que a inovação é mais que alta tecnologia, ela não é fruto do acaso e sim do trabalho sistemático organizado e gerenciado com potencial de introduzir um novo hábito.

O conceito de inovação que impera no mundo atual, afasta-se de algo parecido com o feito de Lee. O conceito dedica-se, especificamente, a um plano e execução de negócio, ao cliente, ao consumidor, ao público-alvo (nome apropriado, no sentido de quem é atingido por algo). Vejamos como anunciam: “Precisamos colocar as pessoas em primeiro lugar. A experiência do cliente é uma propriedade estratégica da mais alta importância para os negócios nos dias de hoje” (Melo e Abelheira, 2015, p. 177). Notemos que o ato de colocar as pessoas em primeiro lugar é, imediatamente, seguido pela experiência daquelas que são clientes e consumidores. Pensando nas crianças descalças, elas não são clientes e ou consumidores em potencial, merecedoras de uma propriedade estratégica de importância aos modelos de negócios atuais. Talvez, nesse foco mercadológico resida a fragilidade do que seja inovar, que procura encontrar, em meio ao já conhecido, as respostas para novos problemas.

Não são incomuns os relatos e as críticas de que as universidades, as escolas e a educação precisam se adequar aos novos tempos de inovação, aos modelos atualizados de negócio, e que a educação está sempre a um passo atrás da realidade de mercado. Os próprios designers são vistos como não tão fortes quando comparados aos profissionais formados pelas escolas de negócio e administração, apresentados como excelentes na execução, no empreendimento e na administração do que seja inovar (Melo e Abelheira, 2015).

A crítica sofrida pela educação, que por algum motivo desconfia do mercado evitando adesões mais rápidas, fundamenta-se no entendimento que atender ao mercado é reduzir as produções aos consumidores. Essa redução abdica do potencial das criações que virão, aos moldes dos sapatos que crescem, e não encontram eco nas organizadas sistematizações propostas pelas escolas de negócios, que colocam vendas sobre os próprios olhos quando buscam a lucratividade, a competitividade e o crescimento. A máquina da educação não se acopla facilmente a máquina do mercado, quando o mesmo se afasta da preocupação primeira de defender a vida.

Outra frente, alvo das críticas, são os apontamentos e discussões sobre as poucas patentes brasileiras, o percentual econômico despendido para pesquisa e desenvolvimento e as metas comparadas a outros países quanto a taxa de inovação – indicador de pouca valia, mas, amplamente usado, relaciona a porcentagem de empresas que alegaram ter realizado alguma inovação, mesmo que tal inovação já existisse no mercado (Salerno, 2012). Assim, a inovação tem se tornado um locus de convergência teórica na economia em que as ações educacionais também se tornam mercadoria. A efetivação do crescimento econômico torna imperativo a adoção de novas tecnologias e a aplicação de métodos de gestão mais eficientes. Diante dessa nova realidade, surge a necessidade de expansão do chamado capital humano, no qual o trabalho é ajustado por educação e treinamento das habilidades, perante a um conjunto de elementos apontados como o “verdadeiro propulsor das economias” (Rodriguez et al., 2008, p. 65).

Segundo Erber (2012), no seu texto Inovação como consenso, o último quarto do século XX foi um período de transformações tecnológicas, manifestas pelo paradigma eletrônico, que se tornou ubíquo, englobando todos os setores da economia: desde a agricultura até as indústrias criativas. A expressão tecnologias da informação e comunicação (TICs) consolidou o paradigma da biotecnologia e a emergência da nanotecnologia. “As tecnologias inseriram o tema ‘inovação tecnológica’ na agenda positiva de tomadores de decisões privados e públicos, tornando-o um símbolo de ‘modernidade’ dotado de prestígio e de forte capacidade legitimadora" (p.23). Esse prestígio cria, igualmente, exigências às instituições educacionais que são entendidas como parceiras de cooperação deste processo. Contudo questionamos a forma de construção da agenda em seu cuidado da vida humana.

Mas enfim, o que pode ser apresentado como inovação? A inovação 2 pode ser vista rapidamente como a criação de algo novo, mas, atualmente a palavra é direcionada ao contexto de ideias e invenções, relacionadas a exploração econômica e a invenção que chega ao mercado. Segundo a Organisation for Economic Co-operation and Development – (OECD, 2015), a inovação é o processo que inclui as atividades técnica, de concepção, de desenvolvimento e de gestão que resulta na comercialização de novos (ou melhorados) produtos e processos.


3. ABORDAGENS SOBRE O CONCEITO DE INOVAÇÃO NO MANUAL DE OSLO


A primeira edição do Manual de Oslo (1991) - Proposta de Diretrizes para Coleta e Interpretação de Dados sobre Inovação Tecnológica, foi editada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com o objetivo de orientar e padronizar conceitos, metodologias e construção de estatísticas e indicadores de pesquisa de desenvolvimento de países industrializados. Em 2018, o manual alcança a sua quarta versão, agregando atualizações de forma abrangente e mais compatível com os desafios da implementação, em um contexto de transformação digital frente a economia e a sociedade.




2 Palavra derivada do termo latino innovatio, referente a uma ideia, método ou objeto que é criada rompendo com padrão ou estilos anteriormente conhecidos.



O conceito de inovação apresentado no Manual de OSLO (OECD/Eurostat, 2018), afirma que há incertezas sobre os resultados das atividades inovadoras, sobre qual é a quantidade necessária de tempo e de recursos para implementar um novo processo de produção, marketing ou método de produção, ou o quão bem-sucedidas essas atividades serão. Reitera que a inovação envolve investimento. Para Breschi et al. (2000), a inovação é o substrato dos transbordamentos. Os benefícios da inovação criadora são raramente apropriados por completo pela empresa inventora. As empresas que inovam por meio da adoção de uma inovação podem beneficiar-se dos transbordamentos de conhecimentos ou do uso da inovação original. Para algumas atividades de inovação, os custos da imitação são substancialmente menores que os custos de desenvolvimento, por isso deve-se exigir um mecanismo efetivo de apropriação que ofereça um incentivo a inovar. Outro aspecto destacável do Manual de OSLO diz que a inovação requer a utilização de conhecimento novo, ou um novo uso, ou uma combinação para o conhecimento existente distintos das rotinas padronizadas.

A aposta em educação proposta pelo manual é colocada como forma de treinamento de funcionários, onde o Design é citado. Exemplos de treinamento como atividade de inovação incluem: a) o treinamento de pessoal para usar inovações, como novos sistemas logísticos de software ou novos equipamentos; b) treinamento relevante para a implementação de uma inovação, como instruir funcionários ou clientes sobre os recursos de uma inovação de produto; c) o treinamento de funcionários necessário para desenvolver uma inovação, como treinamento em pesquisa e desenvolvimento ou Design.

No Capítulo 5 - Medindo Recursos de Negócios para Inovação, o Design é citado como um dos elementos necessários para treinar os funcionários e desenvolver uma inovação, encontram-se elencadas as capacidades do Design subdivididas em três categorias definidas por seus conjuntos de habilidades e finalidades: a) projeto de engenharia, incluindo especificações técnicas, ferramental e construção de protótipo; b) Design do produto que determina a forma, cor ou padrão dos objetos, a interface entre software e usuários ou a experiência do usuário nos serviços e c) Design Thinking 3 , que é uma metodologia sistemática para abordar o Design de um bem, serviço ou sistema.

As duas versões estudadas do manual de OSLO (OECD/Eurostat, 2005, 2018) não atribuem que a diversidade de significado de inovação se dê pela abrangência de sua aplicação como vetor de desenvolvimento humano e melhoria da qualidade de vida. As nove ocorrências da palavra “vida” contidas no manual de 2005, e as cinco ocorrências na versão 2018 se referem ao ciclo de vida dos produtos. Apenas no capítulo 8, o manual apresenta um quadro, 8.1 Objetivos e resultados de inovação para medição, por área de influência e nele expõe um item: melhorar a qualidade de vida ou bem-estar, porém não explora como atingir tal melhoria. Como é possível tamanha negligência? Não é de se admirar que as universidades e cursos de Design, se encontrem em dificuldades no desenvolvimento do que seja inovar na perspectiva posta e ditada linguisticamente pelo Manual. Esse diz olhar para temas emergentes em termos econômicos, sociais e ambientais, mas faz uso de uma linguagem que atende ao mercado, produtos e serviços sem centrar-se no humano. Será possível torcer as significações e fazer desdobrar o ser em novos agenciamentos, em direção a outras formas de produzir o conceito de inovação?




3. O Design Thinking é uma metodologia sistemática para o processo de design que utiliza métodos de design para identificar necessidades, definir problemas, gerar ideias, desenvolver protótipos e testar soluções. Pode ser usado para o design de sistemas, bens e serviços (Brown, 2008).


4. A INOVAÇÃO PENSADA COMO RESISTÊNCIA: UMA TORÇÃO NO CONCEITO


Retomemos ao desejo de Lee. Ele desejava proteger os pés das crianças. Deleuze e Guattari (2011) não dissociam o desejo do processo de uma linha de fuga criadora, traçada por máquinas desejantes. Em razão das exigências do mercado capitalista, o desejo é separado desse processo, subordinado a um sistema de repressão-recalcamento que o desintensifica. Portanto, o problema clínico e político da teoria de Deleuze e Guattari é devolver ao desejo o processo que o intensifica, permitindo a criação de novos modos de ser e estar no mundo.

O desejo aqui busca por outros modos de expressão e produção de sentidos junto ao conceito de inovação. Destaca-se que qualquer máquina desejante é acoplada a uma máquina social, porém, ela faz algo escapar, escorrer, cria um tempo de fidelidade e atenção a um desejo. A maquinaria aqui atende a uma vontade de produzir descaminhos frente ao reconhecimento dos prejuízos que o capital nos leva a assumir como verdade sobre o que seja inovar.

O alerta neste artigo refere-se ao quase exclusivo lócus de convergência teórica em economia que as diretrizes para inovação se voltam, preocupadas estritamente com a efetivação do crescimento econômico, dedicadas apenas a aplicação de métodos de gestão mais eficientes. O que se quer questionar é esse direcionamento ao que seja inovação, especialmente no que tange ao trabalho das universidades, naquilo que, a despeito de Lee, fica de fora ou perde o foco, que é a preocupação com o desenvolvimento humano e a melhoria da qualidade de vida, esse é o vetor que se encontra adormecido, esquecido pelas diretrizes. O caso de Lee serve para ilustrar um outro caminho possível, inventado, consecutivamente outro, em devir, mas que é político, ético e estético. Esse lado adormecido diz daquilo que se imagina, contenha pistas de um fazer inovador que possa interessar aos fazeres universitários, pensado, neste artigo, como espaço de criação e de resistência.

É importante destacar que esse escrito não está contra tornar os métodos de gestão mais eficientes e sim que a gestão seja a única tônica para os fazeres que envolvam a inovação, em especial, aqueles que surgem de experimentações em ambientes educacionais. A forma teórica do manual de Oslo para o que seja inovar, tem percorrido uma linha reta e única com foco no consumidor, sua formação, sua manutenção e sua gestão.

Embora Salerno (2015) aponte que inovação não é fruto do acaso, a defesa aqui é que ela é fruto de um encontro inesperado e involuntário, o que não quer dizer que não haja trabalho, contudo somente o trabalho organizado e sistematizado não garante o sucesso da inovação. A torção também serve para apontar pistas que permitam resistir aos relatos e as críticas de que as universidades, as escolas e a educação estão sempre a um passo atrás das agendas de mercado.

A abordagem que o Manual faz da Educação, gera preocupação, pois a vê como uma ferramenta de possibilidade com foco no treinamento do que chama de capital humano para atingir a inovação. Neste contexto, o Manual diz que identifica possíveis formas para experimentação, onde o Design é mencionado, porém não aponta os caminhos da criação que promove a vida.

Criar algo tendo como final a imagem do consumir, mesmo que distante e borrada, sem considerar a vida das pessoas, torna extremamente reduzido o potencial inovador. A torção, neste artigo, preza pelo cuidado com a vida, imaginamos que esta é a chave do que defendemos. É inegável o primor da inovação de Lee, que acabou por gerar um plano de negócio em expansão, em um segmento que atende as primeiras necessidades da vida humana. Pensemos, se ainda não somos capazes de cuidar dos pés de milhares de infantes mundo afora, que tanto estamos inovando? Que modelo de negócio será tão potente se não atinge e cuida da vida.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Pensar o conceito de inovação, sem fazer dela um conceito universal, é uma forma política de resistência. Na expressão inovar, cabe outros sentidos como: mudar para melhor, dar um aspecto novo, consertar, corrigir, adaptar a novas condições algo que está superado, que é inadequado, obsoleto. Torcer o conceito de inovação é pensá-lo em sua dimensão e foco no cuidado e na conservação da vida humana, sem desconsiderar as questões ética, estética e política. Portanto, revirar, torcer o conceito de inovação implica um gesto de construção de uma outra estética do existir, que deseja acionar forças ativas e criativas, que relancem os sujeitos a outras problemáticas a exemplo de Lee.

O caso The Shoe That Grows começa pela necessidade do humano e usa o Design e as estratégias de negócio para democratizar o acesso à calçados, que neste caso, são artigos de primeira necessidade. O capital financeiro vem como suporte a isso e não como uma prioridade em um projeto de inovação que busca um nicho ainda não atendido. A inovação passa antes pela criação de pensamento que no caso de Lee surge do encontro atento aos pés machucados.

Retomando os escritos deleuzeanos, a criação de pensamento é a única criação verdadeira e está ligada a criação de problemas. Lee tem um encontro com os pés enferidados que o faz pensar, enquanto cria o problema de um sapato economicamente viável e mais duradouro a partir de uma determinada comunidade. Já o modo de inovar do Manual de Oslo escapa da criação de pensamento, ele se pauta na crença da possibilidade da antecipação dos encontros. Além disso, os agentes da inovação têm o poder e a responsabilidade de provocá-los, treinando o capital humano enquanto cuidam dos conteúdos, os organizam, os preparam, os traduzem, a espera de um exercício imediato das faculdades mentais. O conceito de inovação apresentado no Manual ignora o que seja a criação de pensamento provocada involuntariamente pela força dos encontros inesperados.



BIBLIOGRAFIA


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