1. INTRODUÇÃO
Durante muito tempo a ciência e a tecnologia ostentaram uma suposta neutralidade, como se sua construção e manutenção não estivessem fundamentadas na hierarquização de sujeitos com base em sua classe social, gênero, etnia, raça etc. O sujeito tradicional da ciência é o sujeito hegemônico, sujeito do colonialismo, branco, europeu, heteronormativo e pertencente a classes sociais privilegiadas (Freitas et al., 2017).
Esse cenário vem se transformando aos poucos, motivado pelas agendas feministas e pelos estudos de gênero, estudos negros, estudos indígenas, entre outros. Estes estudos buscam evidenciar que, além de não se tratar de construções neutras, a ciência e, consequentemente, a tecnologia são parte de uma estrutura de relações de poder baseadas numa sociedade patriarcal e androcêntrica (Freitas et al., 2017).
Historicamente, a discussão a respeito da categoria “gênero” implica em diversas perspectivas e impasses entre pesquisadores, levando esse campo de estudo a diferentes abordagens e linhas de pensamento. Mais de que uma simples categoria baseada em elementos fisiológicos, o gênero deve ser compreendido como uma forma cultural de classificação, parte de um sistema relacional e hierarquizador que estabelece distinções baseado na violência simbólica. Para além das dicotomias do homem/mulher, gênero feminino/gênero masculino, trata-se de uma categoria abstrata que tem por objetivo “explicar e desconstruir diferenciações baseadas nas percepções sociais sobre o sexo, o corpo, a cultura” (Natansohn, 2014, p. 5).
Pautamo-nos aqui na perspectiva defendida pela pesquisadora Linda Nicholson, que, em seu artigo “Interpretando o gênero”, leva-nos a pensar o corpo biológico como algo complexo, que deve ser analisado dentro de uma história e uma cultura, sob a ótica de uma variável, e não uma constante. A autora alerta para os perigos de pensar gênero como dependente do corpo biológico, o que contribuiria para a exclusão daqueles que diferem da heterossexualidade normativa, pautada na oposição binária masculino/feminino (Nicholson, 2000).
Para pensar a categoria mulher se faz necessário abandonar a dicotomia masculino/feminino, compreendendo-a como uma complexa rede de características que se entrecruzam (Nicholson, 2000). A autora se baseia nas ideias de Ludwig Wittgenstein sobre linguagem para argumentar que o sentido de mulher não deve ser definido por meio de uma característica ou conjunto delas, mas, sim, a partir de uma complexa rede de características, com diferentes elementos presentes em diferentes casos.
Assim, sugiro pensarmos o sentido de “mulher” como capaz de ilustrar o mapa de semelhanças e diferenças que se cruzam. Nesse mapa o corpo não desaparece; ele se torna uma variável historicamente específica cujo sentido e importância são reconhecidos como potencialmente diferentes em contextos históricos variáveis. (Nicholson, 2000, p. 36)
A filósofa e pesquisadora Judith Butler corrobora Nicholson ao abandonar a ideia de uma definição exata para a categoria mulher, o que, segundo ela, apenas reforçaria ainda mais o binarismo masculino/feminino de matriz heterossexual (Butler, 2018). A autora, em seu livro Problemas de gênero, coloca à prova a categoria do sujeito, argumentando que esse trata-se de um construto performativo, logo, mulher “em si é um termo em processo, um devir, um construir do qual não se pode dizer legitimamente que tenha origem ou fim” (Butler, 2018, p. 69). Consideramos, portanto, “mulher” como essa complexa rede de características que se cruzam, uma constante construção, sem definição fixa. Ou seja, o sentido de mulher aqui não está restrito a uma característica específica física, social ou psicológica, ou a um conjunto delas, mas, sim, ao emaranhado de atributos que possibilitam mapear semelhanças e reconhecer diferenças desses sujeitos.
Neste trabalho, buscamos compreender os games pela ótica das tecnologias de gênero, termo cunhado pela escritora Teresa de Lauretis que diz respeito às “técnicas e estratégias discursivas” com as quais se constroem as relações de gênero específicas (De Lauretis, 1994, p. 38). Nesta perspectiva, o gênero não se trata de uma propriedade dos corpos, ou seja, algo natural aos seres humanos, mas de um conjunto de efeitos “produzidos nos corpos, comportamentos e relações sociais” (Pereira, 2009, p. 486). Para a autora, gênero é produto de diferentes tecnologias sociais, tais como televisão, cinema, jornal, internet e, consequentemente, games. Dessa forma, o gênero não é propriedade dos corpos, mas um conjunto de efeitos produzidos sobre eles.
Ao longo deste trabalho o enfoque estará nas questões de gênero, direcionado à experiência de mulheres no contexto virtual e, em especial, dos jogos digitais, mas é importante, no entanto, reforçar que gênero nesta pesquisa não se trata de um sinônimo de mulher. Os sujeitos centrais abordados ao longo desta pesquisa identificam-se como mulheres, mas nesse recorte há multiplicidade de identidades criadas discursivamente que articulam, além do gênero, raça, origem geográfica, classe social, contexto cultural, orientação sexual, entre outros, que evidenciam a necessidade de uma abordagem sob lentes “interseccionais”, termo que diz respeito à interdependência das relações de poder de raça, sexo e classe.
O conceito de interseccionalidade, cunhado academicamente pela afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw em 1989, permite enxergar as sobreposições de gênero, raça e classe e define o posicionamento do feminismo negro frente à ideia de um feminismo global e hegemonicamente branco. Apesar do termo se tornar popular no contexto acadêmico a partir dos anos 2000, sua origem está atrelada ao movimento feminista negro dos anos 1970, conhecido como Black Feminism, que buscava criticar a hegemonia do feminismo branco, europeu, heterossexual e de classe média. “A interseccionalidade é vista como uma das formas de combater as opressões múltiplas e imbricadas, e portanto como um instrumento de luta política” (Hirata, 2014, p. 69).
1.1. A BRECHA TECNOLÓGICA DE GÊNERO
Historicamente o trabalho produtivo foi designado ao gênero masculino, reservando para as mulheres as funções de atendimento às necessidades básicas e de bem-estar social, ligadas essencialmente a questões de cuidado e de reprodução. Se antigamente elas eram exclusivamente ligadas a funções como cuidar da casa, educar os filhos e se dedicar a atividades de artesanato, ainda hoje esses estereótipos se reproduzem com a imagem feminina fortemente relacionada a funções de cuidado, estando em sua maioria ligadas a áreas como enfermagem, recursos humanos, comunicação, educação etc.
A exclusão feminina do fazer científico e tecnológico foi pautada por discursos científicos, que postulavam, a partir de determinações biológicas, que a mulher seria menos capaz de produzir ciência e tecnologia. Estudos mais recentes apontam inquietudes sobre esse universo hegemônico, androcêntrico e sexista na ciência e na tecnologia. (Freitas et al., 2017, p. 4)
Em linhas gerais, os estudos de gênero em ciência e tecnologia apontam que esses saberes foram instituídos a partir de bases epistemológicas e filosóficas masculinas. A ciência foi construída por homens e para homens. Não por um determinismo biológico que justifique o afastamento de mulheres dessas áreas, mas por uma construção arquitetada para manter privilégios masculinos sobre o contexto hegemônico androcêntrico da ciência.
O conceito de suposto determinismo biológico foi fortemente utilizado para perpetuar a ideia de que mulheres possuem capacidades inferiores aos homens em determinadas áreas, entre elas a ciência, a tecnologia e os games. Um conceito equivocado que desconsidera completamente o contexto social no qual o sujeito está inserido (Nicholson, 2000). O afastamento das mulheres da tecnologia não se baseia em fatores biológicos, e sim em uma brecha tecnológica de gênero.
Essa brecha diz respeito não somente aos obstáculos enfrentados pelas mulheres para o acesso às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), mas envolve também dimensões sociais de como o gênero opera de forma hierarquizadora no desenho, distribuição e apropriação das tecnologias pelo gênero feminino (Natansohn, 2013).
Se observada a história dos grandes avanços tecnológicos, por exemplo, é possível identificar dois fatores: primeiro, que a tecnologia é projetada, moldada e difundida por homens brancos na academia e no complexo industrial militar; segundo, quando mulheres de alguma forma conseguem atravessar essa brecha que segrega a participação por gênero na tecnologia, ocorre um apagamento histórico e sistemático da atuação feminina, como, por exemplo, o fato de Ada Lovelace e Hedy Lamarr serem importantes nomes da tecnologia e passarem desapercebidos para a maioria das pessoas.
What we learn from the history of the internet is that it was engineered, implemented, programmed, and spread by white men in academia and the military-industrial complex. Despite the fact that the earliest computer programmers were actually women, the creators of ARPANET and the earliest desk-sized computers were educated white men with ties to research institutions and the government, spaces which have historically been associated with white male authority and privilege. (Bezio, 2018)
No livro Internet em código feminino: teorias e práticas, a autora Graciela Natansohn utiliza o exemplo da experiência infantil de meninos e meninas ao desmontarem seus brinquedos para ilustrar o que ela chama de “hábitus tecnológico binário, hierárquico e altamente desfavorável às meninas” (Natansohn, 2013, p. 17). Segundo a autora, os meninos são estimulados a desmontar e (tentar) remontar seus brinquedos num exercício da curiosidade criativa fundamental ao fazer tecnológico, enquanto as meninas, na mesma situação de desconstruir suas bonecas, são repreendidas e desestimuladas, encorajadas a demonstrar zelo e responsabilidade com seus pertences, empurradas ao ofício do cuidado, de bem-estar social e de reprodução.
BIBLIOGRAFÍA
Bezio, K. Ms. (2018). Ctrl-Alt-Del: GamerGate as a precursor to the rise of the alt-right. Leadership, 14(5), 556–566. doi:10.1177/1742715018793744
Blanco, B. (2017). Games para mulheres: do Girls Game Movement ao pós Gamergate. En Anais do Congresso Intercom - Sociedade Brasileira De Estudos Interdisciplinares Da Comunicação. Curitiba: Intercom. Recuperado de: http://portalintercom.org.br/anais/nacional2017/resumos/R12-0280-1.pdf
Butler, J. P. (2018). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (16. ed.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Cassell, J. e Jenkins, H. (2011). From Quake Grrls to Desperate Housewives: A Decade of Gender and Computer Games. In: Kafai, Y. B., Jenkins, H. (Eds.). Beyond Barbie to Mortal Kombat – New Perspectives on Gender and Gaming. Cambridge, Massachusetts London: MIT Press.
Cassell, J. e Jenkins, H. (1998). From Barbie to Mortal Kombat: gender and computer games. 1. ed. Cambridge, Mass.: MIT Press. Recuperado de: https://archive.org/details/frombarbietomort00cass#maincontent
De Lauretis, T. (1994). A tecnologia do gênero. In: Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 206–242.
Freitas, L. B. et al. (2017). Gênero, Ciência e Tecnologia: estado da arte a partir de periódicos de gênero. Cadernos Pagu, 49. doi:10.1590/18094449201700490008.
Hayes, E. (2007). Gendered Identities at Play: Case Studies of Two Women Playing Morrowind. Games and Culture, 2(1), 23–48. doi:10.1177/1555412006294768
Hirata, H. (2014). Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, 26(1), 61–73. doi:10.1590/S0103-20702014000100005
McGonigal, J. (2017). A realidade em jogo. Rio de Janeiro: Editora Best Seller.
Natansohn, G. (2014). Mulheres e uso das TIC, algumas reflexões metodológicas. En Anais do Intercom - Sociedade Brasileira De Estudos Interdisciplinares Da Comunicação. Foz do Iguaçu: Intercom. Recuperado de: http://gigaufba.net/wp-content/uploads/2014/09/Mulheres-USO-TIC-Intercom2014Natansohn2014.pdf
Natansohn, G. (Ed.) (2013). Internet em código feminino. Teorias e práticas. (1. ed.). Buenos Aires: La Crujía. Recuperado de: http://gigaufba.net/internet-em-codigo-feminino/
Newzoo. (2019). Newzoo’s Gamer Segmentation. Recuperado de: https://resources.newzoo.com/hubfs/Newzoo_Gamer_Segmentation.pdf
Nicholson, L. (2000). Interpretando o gênero. Revista Estudos Feministas, 8(2), 9-42. doi:10.1590/%25x
Pereira, P. P. G. (2009). Violence and technologies of gender: time and space in the newspaper. Revista Estudos Feministas, 17(2), 485–505.
Sakuda, L. O. e Fortim, I. (Eds.) (2018). II Censo da Industria Brasileira de Jogos Digitais. Brasília: Ministério da Cultura. Recuperado de: https://nuvem.cultura.gov.br/index.php/s/mdxtGP2QSYO7VMz#pdfviewer
Scott, J. (1989). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Gender and the politics of history, 20(2), 35, 1989.
Sioux Group et al. (2019). Pesquisa Game Brasil 2019. São Paulo: Sioux Group. Recuperado de: https://www.pesquisagamebrasil.com.br/
FONTES DAS IMAGENS
1. Reis Jr., D. (2019). Atari Polyvox - 1978 Propagandas Históricas | Propagandas Antigas. Recuperado de: https://www.propagandashistoricas.com.br/2013/02/atari-polyvox-1978.html
2. Original Nintendo NES Commercial First TV Ad 1985. [s.d.]. Direção: RETRO GAMES FAN. Recuperado de: https://www.youtube.com/watch?v=IU1-ncmPiJk
3. Barbie Fashion Designer (1996) Windows box cover art. [s.d.]. Recuperado de: https://www.mobygames.com/game/windows/barbie-fashion-designer/cover-art/gameCoverId,87484/
4. Rockett’s New School. [s.d.]. Recuperado de: https://purplemoon.fandom.com/wiki/Rockett%27s_New_School